segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Capítulo Cinco: Tardo Fim

Fui jogada ao chão junto de Scott. Estilhaços de madeira e tiros cortaram os ares. As pessoas na sacada corriam desesperadas de volta ao salão, em busca das saídas. Um disparo de canhão atingiu o telhado, fazendo-o desabar. Um dirigível enorme disparava suas dúzias de canhões contra o navio do Capitão Wig, que em segundos foi totalmente destruído. A ferocidade do ataque era aterrorizante.
 
- Responda Micaela! – Scott levantou-se e esticou sua mão a mim – É sua única chance de escapar desse inferno!

Agarrei sua mão.

Soldados do exército inglês surgiam de toda parte. Os festeiros sacavam suas armas e tentavam reagir. Inútil. Os ingleses os assassinavam desprovidos de remorso.

Quando consegui sair às ruas, parecia ter finalmente chegado ao inferno. Mirrorport estava sendo atacada por forças inglesas. Era uma guerra, e não havia para onde fugir. Nos céus, acima das colunas de fumaça negra que subiam das dezenas de prédios que eram consumidos por chamas, três dirigíveis, enormes navios de guerra, observavam a tomada da cidade. Eles repreendiam violentamente com seus canhões a qualquer tentativa de resistência que os terrestres tomassem.

Corremos às docas. Não havia praias nas proximidades de Mirrorport. Nascida da baía em minguante, havia um único ponto onde forças podiam desembarcar. Antes de os navios dominarem os ares. Dos diversos navios ancorados, apenas um estava pronto para partir, plenamente tripulado.

- Suba naquele navio – Scott me dizia, enérgico – E obedeça ao capitão! É sua única forma de escapar daqui. 

- Espere! Não posso ir sem meu livro!

Scott não gostou quando escapei dele e comecei a subir as ruas de volta ao coração de Mirrorport. Fui sozinha. Pensava em uma maneira de como o livro poderia me ajudar naquele momento. A mim, e a Carmensita! Não vi o que aconteceu a ela após deixa-la na sacada. Não podia deixar que nada acontecesse de mal a ela, mas não tinha ideia do que fazer.

Cheguei a um casarão antigo, fúnebre. Janelas escuras, em velhas armações de bronze, não transpareciam luz alguma. Da chaminé erguida acima do telhado cinzento e curvado escapavam fios azulados de fumaça. As ripas de madeira há anos se rebelaram contra sua pintura branca e agora se empenavam e rangiam ao largo da ventania. Forcei as altas grades do portão, mas não fui capaz de abri-las. Agarrei, então, as trepadeiras do muro e saltei para o jardim, que já não tinha flores, que já não tinha cor.

Ao forçar a porta de madeira da entrada principal, um túnel de vento se instalou. Portas e janelas batiam com violência, como se soubessem que a casa tinha seus dias contados. Folhas de outono voaram pelo corredor não iluminado e um retrato caiu da parede, estilhaçando o vidro que protegia a imagem da bela mulher jovem de chapéu florido.

Avancei a passos rápidos por um lugar que há anos não frequentava. A cada porta que passava pelo corredor, imagens singelas, sem importância para todos os outros, percorriam minha mente. Lembrava-me desses quartos iluminados pelos raios dourados do fim de tarde entrando pelas vidraças e do cheiro do café que contaminava toda a casa, preparado todo dia ao mesmo horário, do guarda-roupa com espelho engraçado e da penteadeira repleta de frascos de vidro. O que eu via agora eram empoeirados cômodos vazios e cinzentos, móveis tristes e velhos, e cheiro de coisa esquecida.

Atravessei o corredor direto à sala principal. Uma escada outrora soberana subia o alto cômodo colada à parede do lado oposto, e da única porta da sala, situada à esquerda, entrava toda a ventania. Das altas vidraças eu via o caos se aproximando, como se me alertasse claramente que essa casa não seria poupada. Ele estava sentado em uma cadeira de vime no centro do cômodo, de costas para mim. O assoalho rangeu ao meu primeiro passo, anunciando a porta que devia se fechar por educação, que uma conversa tomaria lugar. Ela, de mal grado, bateu com força, bloqueando o vendaval descontrolado. Silêncio agradou nossos ouvidos.

- O que acha que veria, se lesse esse livro agora? – me indagou com sua voz profunda.

Meus lábios não revelaram as imagens que passavam em frente aos meus olhos. O livro não me perdoava. Imaginava que veria os anos de minha infância nessa casa, a mesma luz dourada do fim de tarde. Não demoraria, contudo, para que as chamas consumissem tudo ao meu redor. Eu presa na casa da árvore. Os estalos dos gravetos queimando. Os gritos.

- Você precisa sair daqui – avancei até ver o velho de frente – Não vão te poupar pelo mérito do passado!

Ele levantou pesadamente os olhos do grande livro que tinha no colo até se encontrarem com os meus. A idade tornou seu semblante severo, de sobrancelhas arredias totalmente brancas e de pele manchada. As mãos, cuja firmeza havia sido roubada pelo tempo, ergueram lentamente o livro até mim. Peguei-o.

- Ele não pode te tirar daqui? – indagou-me ironicamente – Estaria disposta a pagar o preço? Acho que esse você sempre esteve.

- Venha comigo! Tenho um barco que pode tirar a gente daqui agora – eu gritava com a figura teimosa. Por que ele não simplesmente não me ouvia?!

- Você me pediu para guarda-lo e aí está com ele novamente. Agora vá – seus olhos se perderam no horizonte imaginário das paredes descascadas.

- Ao menos uma vez na vida deixe esse orgulho besta de lado! Vai pagá-lo com a vida!

O olhar voltou a mim fulminante dessa vez. Severo. Julgador. Foram a honra e o orgulho responsáveis pela maior conquista de sua carreira no exército. E da maior tragédia da sua vida. Uma conquista que lhe custou o que tinha de mais valioso, e que jamais pôde saldar. Esse olhar foi o suficiente para me fazer recuar um passo, encerrando a conversa. O assoalho anunciou novamente, e porta que se continha agitadamente em vibração escancarou-se para dar lugar novamente ao vendaval e as folhas de outono. Voltou os olhos para o horizonte que só ele podia enxergar em sinal de término. Com passos lentos e tendo o livro agarrado ao peito com os dois braços, andei até o corredor. Percebi que eu era incapaz de tirá-lo dali. Talvez todos fossem. Quando me encontrei no limite da sala, ele me disse sem mover a cabeça.

- Micaela – ele chamou – A única maneira que terá de se recordar dessa casa, depois de hoje, será através de seu livro. Entenda que haverá um momento que ele não poderá te salvar.

No ápice de sua melancólica aceitação, excluiu-se de minhas vontades de lembrança em detrimento da casa. Aquele homem havia aguentado sua pena por décadas e, naquela noite, consumou-se seu fim. Tomei meu caminho de retorno, com as lágrimas sendo carregadas pelo vento.

- Adeus, Anthony.

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