- Responda Micaela! – Scott levantou-se e esticou sua mão a
mim – É sua única chance de escapar desse inferno!
Agarrei sua mão.
Soldados do exército inglês surgiam de toda parte. Os
festeiros sacavam suas armas e tentavam reagir. Inútil. Os ingleses os
assassinavam desprovidos de remorso.
Quando consegui sair às ruas, parecia ter finalmente chegado
ao inferno. Mirrorport estava sendo atacada por forças inglesas. Era uma guerra,
e não havia para onde fugir. Nos céus, acima das colunas de fumaça negra que
subiam das dezenas de prédios que eram consumidos por chamas, três dirigíveis,
enormes navios de guerra, observavam a tomada da cidade. Eles repreendiam
violentamente com seus canhões a qualquer tentativa de resistência que os
terrestres tomassem.
Corremos às docas. Não havia praias nas proximidades de
Mirrorport. Nascida da baía em minguante, havia um único ponto onde forças
podiam desembarcar. Antes de os navios dominarem os ares. Dos diversos navios
ancorados, apenas um estava pronto para partir, plenamente tripulado.
- Suba naquele navio – Scott me dizia, enérgico – E obedeça
ao capitão! É sua única forma de escapar daqui.
- Espere! Não posso ir sem meu livro!
Scott não gostou quando escapei dele e comecei a subir as
ruas de volta ao coração de Mirrorport. Fui sozinha. Pensava em uma maneira de
como o livro poderia me ajudar naquele momento. A mim, e a Carmensita! Não vi o que aconteceu a ela após deixa-la na sacada. Não
podia deixar que nada acontecesse de mal a ela, mas não tinha ideia do que
fazer.
Cheguei a um casarão antigo, fúnebre. Janelas escuras, em
velhas armações de bronze, não transpareciam luz alguma. Da chaminé erguida acima
do telhado cinzento e curvado escapavam fios azulados de fumaça. As ripas de
madeira há anos se rebelaram contra sua pintura branca e agora se empenavam e
rangiam ao largo da ventania. Forcei as altas grades do portão, mas não fui
capaz de abri-las. Agarrei, então, as trepadeiras do muro e saltei para o
jardim, que já não tinha flores, que já não tinha cor.
Ao forçar a porta de madeira da entrada principal, um túnel
de vento se instalou. Portas e janelas batiam com violência, como se soubessem
que a casa tinha seus dias contados. Folhas de outono voaram pelo corredor não
iluminado e um retrato caiu da parede, estilhaçando o vidro que protegia a
imagem da bela mulher jovem de chapéu florido.
Avancei a passos rápidos por um lugar que há anos não
frequentava. A cada porta que passava pelo corredor, imagens singelas, sem
importância para todos os outros, percorriam minha mente. Lembrava-me desses
quartos iluminados pelos raios dourados do fim de tarde entrando pelas vidraças
e do cheiro do café que contaminava toda a casa, preparado todo dia ao mesmo
horário, do guarda-roupa com espelho engraçado e da penteadeira repleta de
frascos de vidro. O que eu via agora eram empoeirados cômodos vazios e
cinzentos, móveis tristes e velhos, e cheiro de coisa esquecida.
Atravessei o corredor direto à sala principal. Uma escada
outrora soberana subia o alto cômodo colada à parede do lado oposto, e da única
porta da sala, situada à esquerda, entrava toda a ventania. Das altas vidraças
eu via o caos se aproximando, como se me alertasse claramente que essa casa não
seria poupada. Ele estava sentado em uma cadeira de vime no centro do cômodo,
de costas para mim. O assoalho rangeu ao meu primeiro passo, anunciando a porta
que devia se fechar por educação, que uma conversa tomaria lugar. Ela, de mal
grado, bateu com força, bloqueando o vendaval descontrolado. Silêncio agradou
nossos ouvidos.
- O que acha que veria, se lesse esse livro agora? – me indagou
com sua voz profunda.
Meus lábios não revelaram as imagens que passavam em frente
aos meus olhos. O livro não me perdoava. Imaginava que veria os anos de minha
infância nessa casa, a mesma luz dourada do fim de tarde. Não demoraria,
contudo, para que as chamas consumissem tudo ao meu redor. Eu presa na casa da
árvore. Os estalos dos gravetos queimando. Os gritos.
- Você precisa sair daqui – avancei até ver o velho de
frente – Não vão te poupar pelo mérito do passado!
Ele levantou pesadamente os olhos do grande livro que tinha
no colo até se encontrarem com os meus. A idade tornou seu semblante severo, de
sobrancelhas arredias totalmente brancas e de pele manchada. As mãos, cuja
firmeza havia sido roubada pelo tempo, ergueram lentamente o livro até mim.
Peguei-o.
- Ele não pode te tirar daqui? – indagou-me ironicamente –
Estaria disposta a pagar o preço? Acho que esse você sempre esteve.
- Venha comigo! Tenho um barco que pode tirar a gente daqui
agora – eu gritava com a figura teimosa. Por que ele não simplesmente não me
ouvia?!
- Você me pediu para guarda-lo e aí está com ele novamente.
Agora vá – seus olhos se perderam no horizonte imaginário das paredes
descascadas.
- Ao menos uma vez na vida deixe esse orgulho besta de lado!
Vai pagá-lo com a vida!
O olhar voltou a mim fulminante dessa vez. Severo. Julgador.
Foram a honra e o orgulho responsáveis pela maior conquista de sua carreira no
exército. E da maior tragédia da sua vida. Uma conquista que lhe custou o que
tinha de mais valioso, e que jamais pôde saldar. Esse olhar foi o suficiente
para me fazer recuar um passo, encerrando a conversa. O assoalho anunciou
novamente, e porta que se continha agitadamente em vibração escancarou-se para
dar lugar novamente ao vendaval e as folhas de outono. Voltou os olhos para o
horizonte que só ele podia enxergar em sinal de término. Com passos lentos e
tendo o livro agarrado ao peito com os dois braços, andei até o corredor. Percebi
que eu era incapaz de tirá-lo dali. Talvez todos fossem. Quando me encontrei no
limite da sala, ele me disse sem mover a cabeça.
- Micaela – ele chamou – A única maneira que terá de se
recordar dessa casa, depois de hoje, será através de seu livro. Entenda que haverá
um momento que ele não poderá te salvar.
No ápice de sua melancólica aceitação, excluiu-se de minhas
vontades de lembrança em detrimento da casa. Aquele homem havia aguentado sua
pena por décadas e, naquela noite, consumou-se seu fim. Tomei meu caminho de
retorno, com as lágrimas sendo carregadas pelo vento.
- Adeus, Anthony.
Nenhum comentário:
Postar um comentário