quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Capítulo Quatro: Porto Seguro - Parte 1

Esqueci de me apresentar. Meu nome é Micaela Fontes. Agora você já sabe

Mirrorport, lugar conhecido. Nada como sujar as botas por suas ruas enlameadas e visitar bons amigos.

- Outro navio? Está louca, Micaela?! O que aconteceu com o Sloup? Eu acabei de te emprestar!

Como eu odeio gente mesquinha. E Quarterbooty era esse tipo de gente.

- Sloup está fora da jogada, McTravis me encontrou. Mas isso não é importante agora, estive pensando em planos grandes.

- Planos grandes? Grandes são as dívidas que tem comigo! Esse é o terceiro navio voador que te empresto e você destrói!

O Estopim era o nome da taverna de Quarterbooty naquela época ainda. Uns anos mais tarde foi aglomerada ao conjunto de galpões das docas. O gordo vestia-se diferente de nós, com folgados calções agarrados nos tornozelos e um colete aberto e sem mangas, de um tom claro como sorvete de creme, contrastando com sua pele escura. Quarterbooty era um maldito contrabandista que eu ajudei a fugir da prisão uma vez. Tudo bem que ele só foi parar na prisão por minha culpa, mas isso é irrelevante.

- Escuta Quarterbooty. Eu preciso de um navio novo. E McTravis não será mais um problema. Só preciso que me arranje mais um navio e eu lhe pagarei o custo dos outros três.

- Esqueça! Seu débito comigo encerra nossas atividades comerciais.

Obviamente, eu lhe apresentei argumentos racionais dotada de paz de espírito que o fizesse reconsiderar sua posição e me apoiar dada as circunstâncias:

- Vai se ferrar!

Quarterbooty não era o único homem que tinha navios voadores em Mirrorport.

Mirrorport era uma cidade não muito grande, um entreposto para navios que vinham de Londres em direção à Normandia, tomada por contrabandistas, piratas e a escória dos mares e dos ares. Um lugar que eu podia chamar de lar.

Havia conhecidos que eu podia cobrar ainda, como o velho Dave Cavacovas, Foster Duque, Amigo Terry e outros.

- Morreu? De que?

- O tornozelo ficou enroscado na corda da âncora quando desciam ela na água – Tia Maria, viúva desdentada de Dave Cavacovas, me informava.

- Ele me devia cinco libras!

- A mim também! E à metade de Mirrorport.

Como alguém pode morrer sem pagar suas dívidas? Que tipo de egoísmo mais doentio. 

- Onde está Foster Duque?

- No inferno, provavelmente – foi a vez de Jack Boiafria, irmão do taverneiro Byron King, da Boteca, amigo pessoal de Foster me responder – McTravis caçou ele até a morte.

- Alguma notícia do Amigo Terry? Não me diga que ele está morto também!

Amigo Bill não respondeu.

- Tá certo, me diga como ele partiu dessa.

- Foi enforcado pela RAN.

Meu Deus! Qual o problema das pessoas em pagarem as dívidas que me devem? Não posso comprar um navio voador por aí sem dinheiro! Não tinha jeito. Eu sabia que só havia um lugar – uma pessoa – que pudesse me ajudar agora. Eu me sentia péssima de ter que ir lá. Estava intimidada, mas não havia outra saída.

***

O pequeno escritório não tinha janelas ou entradas de ar visíveis. Era escuro, úmido e apenas uma lâmpada elétrica iluminava – mal – o lugar. Um ventilador velho e sem uso empilhava poeira encima de um armário de metal atrás do balcão. Barris de madeira próximos das paredes serviam de assentos, sei lá. No ar pairava a angústia acumulada trazida por todos aqueles que, assim como eu, tinha como destino final o escritório de Anthony Woods – o agiota.

Tão logo entrei, a porta fechou-se sozinha atrás de mim. Um senhor, pai de família, assassino, tanto faz, despejava cédulas do balcão a um saco preto. Jamais se verá outro rosto tão angustiado por receber tamanha quantia de dinheiro. O valor daquelas notas não era o mesmo das ganhadas pelo suor do trabalho, era muito mais. O saco, irônico, era cortesia de Woods. Acompanhei a trajetória do homem ao deixar o local. Anthony soou uma campainha, colocando a mim na posição do sujeito que tinha acabado de observar.

- Preciso de dinheiro, Anthony.

- É claro que precisa. Acha que alguém vem aqui apenas para visitar um velho amigo? – sua voz era firme e profunda.

Eu não ousaria enfrentar aquele homem. O topo dos seus oitenta anos reduziu-lhe a massa e a altura, mas um retrato atrás do balcão recordava a todos o coronel do exército britânico que ele havia sido. O rosto jovem sorria sedutor às meninas, nada de barba ou bigode, sobrancelhas fortes e bem definidas, olhar afiado como o das águias. Linhas retas faziam o contorno de seu rosto.

- Não vou lhe emprestar dinheiro, Micaela, nem que me devolvesse em dobro. Você não irá me pagar.

- Por favor – minha voz falhava, a garganta doía – Não viria até o senhor se não tivesse outra alternativa.

- Você ergueu essa muralha, Micaela – ele inclinou-se em sua cadeira estofada e apoiou os cotovelos no balcão – Não consegue ver que a maneira como tem levado as coisas te trouxe até aqui?

Recolhi-me na cadeira. Senti como se pimenta tivesse caído em meus olhos. O ar me sufocava. Não era o dinheiro ou a necessidade que me faziam assim. Era aquele homem. Às vezes julgava que ele podia ser pior que o meu livro.

Anthony reclinou-se e sua cadeira chiou. Estalos metálicos.

- Sabe que por você não haveria juros ou multa. Se não vivesse como tem vivido eu te daria o dinheiro. E se não vivesse como tem vivido não precisaria do dinheiro e não estaria aqui – e o que Anthony dizia não tinha nada a ver com administrar bem dinheiro.

Alguém entrou no escritório. Anthony não me permitiu mais tempo. Soou sua campainha. As lágrimas que não transbordaram pelos olhos escorreram para dentro e regaram uma raiva crescente, súbita. A vontade surgiu de pegar aquela maldita campainha e arremessar contra a parede! Não fiz isso. Queria mostrar que ele estava errado, que não me conhecia como pensava. Levantei o corpo e a cabeça e saí a passos determinados.

***

A brisa vinda do mar me recompôs mais que fisicamente. Sair daquela sala abafada me arejou os pulmões. Toras de madeira formavam um caminho acima das rochas, e além delas o mar. Os cabelos ao vento transportavam-me para o meu mundo acima do mar e das nuvens, onde o horizonte se torna ainda mais amplo.

Entardecia, voltei a caminhar. Ainda precisava de um lugar para passar essa e quantas noites fossem em Mirrorport. O abalo em minha cabeça baixou a guarda de meus sentidos, pois só agora pude perceber que um homem me seguia. Antes que eu pudesse lhe dar as boas recepções, ele chamou por meu nome.

- Você é a que chamam por Micaela? Estaria interessada em um trabalho?

O homem era alto, tinha a pele branca o que revelava que não era daqui – os de Mirrorport tinham a pele bronzeada – olhos verdes como esmeralda, não tinha barba ou bigode, vestia-se como um lorde inglês, inclusive a cartola, e exalava um aroma amadeirado. Seu rosto era triangular. Os olhos eram estreitos assim como seus lábios. O nariz era fino e comprido.

- Há quanto tempo está me seguindo? – perguntei-lhe com pouca voz.

- Isso altera sua disponibilidade acerca de meu serviço?

O homem era prático. E um tanto atraente também.

- Qual é o serviço? – questionei de uma vez.

- Preciso de uma navegadora em um barco cujo capitão é meu amigo.

- Navegadora? Como assim navegadora? Eu não faço serviços menores que o do capitão do navio! E quem precisa de navegadores hoje em dia? Siga o fluxo dos ventos e mantenha-se alto o suficiente para não tropeçar nas montanhas!

O homem sorriu e avançou alguns passos. Era magro e calçava luvas brancas. Definitivamente não era meu tipo, mas se estivesse disponível…

- Não, não, querida Micaela – ele me chamou de querida? – O navio a que me refiro não voa. Navega. E está ancorado no cais. Creio que seja um trabalho que não esteja acostumada, mas certamente lhe recompensará propriamente.

- Você realmente não me conhece, né? – desdenhei – Não trabalho se não for a capitã do navio – soletrei para ele – Ainda mais um navio que não voa! Que ideia! Navios voadores são muito mais seguros seja lá o que quer fazer com eles.

Dei-lhe as costas e voltei a andar. Homens adoram isso. Agora ele vai me seguir e implorar e me dará o posto de capitania.

- Tudo bem – o quê?! – Não posso mudar suas ambições e vontades – espere, espere! Você está fazendo isso errado! – O que posso fazer para ter sua amizade, então?

Parei de andar. Ele não me seguia mais. Virei-me para ele e respondi com franqueza:

- Pague a conta do alfaiate – sim, o alfaiate iria gostar disso. Ainda mais depois que peguei a roupa digna de uma capitã e lhe paguei com as roupas velhas da velha Gertrudes.

Dito, dei-lhe as costas e segui meu caminho, não mais seguida por aquela figura exótica.

- Se estiver interessada – gritou a mim – Haverá uma festa na Boca de Lobo hoje à noite! Apareça por lá!

Uma festa? Hmm, talvez fosse bom. A Boca de Lobo era conhecida mesmo por boas festas, brigas e mortes acidentais.

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