- Merda – balbuciei.
Meus olhos estavam pesados de sono e eu babava. Uma brisa
arrepiou todos os pelos do meu corpo. Isso, é claro, porque eu estava nua,
deitada na terra, debaixo da sombra de uma árvore. E abraçada ao maldito livro.
Esforcei-me para levantar e acordar como se tivesse tomado um porre. Estava
torcendo para que não estivesse muito na merda.
“O som do mar”, pensei. Estava entre algumas árvores, um
pequeno bosque, numa ilhota não muito distante da costa. Já havia acordado em
lugares piores, em condições muito piores.
Este havia sido o último lugar que visitei, horas antes de zarpar
e entrar em combate contra McTravis. Estava em um local seguro. Até certo
ponto.
Avancei cuidadosamente um pouco até ter visão. Eu estava às
costas de uma construção de alvenaria, simples, de dois andares. Adiante havia uma pequena
praia e uma casa próxima. No fim tinha uma alta colina e um moinho de vento
instalado em seu topo. Avaliei bem novamente o meu redor para ver se não tinha
ninguém me vendo. Parecia que não. A ilha era habitada por uns velhinhos que
cuidavam de uma plantação. Eu tinha comprado um pouco de madeira deles para
fazer uns reparos no Sloup.
O prédio próximo a mim era um curral, estábulo ou coisa
parecida. Fui esgueirando pela parede até a quina, onde observei atenta até ter
a certeza que ninguém estaria me vendo. Então rapidamente me expus, entrei no
curral e fechei a porta.
A luminosidade entrava por uma janela redonda no alto de uma
parede, havia alguns animais nas suas baias que se tornaram agitados com a
presença de um estranho. Animais burros! Comecei a vasculhar o local a procura
de algo para vestir.
“Droga! Por que isso sempre acontece?”, pensava. Por essas e
outras que eu já deixava mudas de roupas perto dos locais onde poderia
aparecer.
Encontrei um conjunto pronto. Botas de couro sujas de merda
de animais folgadas em meus pés. Um macacão jeans enorme pra mim e uma camisa
xadrez. Dispensei o chapéu de palha. Já havia me acostumado a vestir roupas
inadequadas. Melhor quando eram folgadas, eu sou pequena mesmo, do que
quando ficam justas demais.
Peguei meu livro e fui em direção a casa. Pela altura do sol
ainda haveria uma ou duas horas até o anoitecer, o que significava que eu havia
dormido por duas, talvez três horas.
Chamei por pessoas na casa e fui recebida por uma senhora de
idade. Lembrei-me de minha avó, que vi no sonho. Disse-lhe que era difícil de
explicar, mas que eu estava sem roupas e perdida na ilha. Dona Gertrudes, a
senhora, foi gentil em conceder-me roupas suas de quando era moça, que estavam
guardadas havia décadas sem uso. Imagino como seria para ela me ver usando suas
roupas. Certamente que inundaria sua mente de lembranças de quando era jovem e
usava essas mesmas peças. Eu não devia ser parecida com ela. Mesmo vestida
assim.
Sentamos em sua cama e ela passou quase uma hora me contando
casos. Não foi estranho para mim, gostava de ouvir as histórias de minha avó
quando era criança. Tanto tempo quase sozinha naquela ilhota deve ter enchido o
coração da velha de tristeza ou amargura.
Depois chegou senhor Fergus, o dono da fazenda. Ele ouvia
mal. Tinha um barco motorizado que usava para ir ao continente. Me levaria
amanhã.
Casal gentil.
Indaguei-lhes se viram quando nossos navios explodiram no
ar, o que confirmou que eu havia dormido ao menos três horas lá no bosque. Pela
noite serviram sopa e prepararam uma cama em um quarto somente para mim. Lembrei-me
de meus avós novamente.
Lá, sozinha, no escuro, peguei o livro novamente, sentada na
cama. Deslizei os dedos por sua capa fazendo desenhos sem sentido. O sonho que
ele me trouxera, de algum modo tinha ligação com o que acabou de acontecer, com
esse casal que me acolheu. Eu não abriria ele essa noite, embora nunca havia
tido tanta vontade de fazê-lo antes desse dia. Não queria assustar os
velhinhos.
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